domingo, 9 de março de 2008

Carta Aberta às ONGs e Lideranças GLBT do Brasil

O lançamento da "Carta Aberta", em janeiro de 2007, marcou uma nova etapa em nossa vida militante dos Direitos Gays. Este Blog, escrito com a finalidade de registrar nossas memórias de ativista, é aberto com este documento, que representou uma iniciativa e mais que isso, uma tentativa de reunir forças para algo que se nos apresentou como essencial no momento político brasileiro: a criação da Secretaria Nacional da Diversidade Sexual - em nivel ministerial no Governo Federal.

Ao invés de um eco uníssono de apoio, ocorreram momentos de difíceis desafios em nossa comunidade GLBT. O real porquê de tal fenômeno ficará para estudos e pesquisas posteriores, em algum tempo.

Como ponto positivo da iniciativa houve o reconhecimento pela ABGLT - Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transsexuais, dos nossos então 35 Anos de Ativismo completados em 2007.

A partir da Carta, o leitor vai acompanhar o desenrolar de muitos fatos.
O nosso desejo e empenho é no sentido de que sejam vencidas todas as diferenças e desencontros ainda observados no seio do nosso movimento, sem dúvida alguma uma condição essencial para que nossas lutas prossigam avançando.

Belo Horizonte, 9 de março de 2008
Edson Nunes
Pioneiro das Lutas Públicas Pelos Direitos Gays no Brasil.


Carta Aberta às ONGs e Lideranças GLBT do Brasil

Esta carta é feita de trechos do livro “Quantas Vezes Fênix”, onde falta o último capítulo – reservado para as repercussões deste documento até abril próximo vindouro. A data marca o prazo pactuado com a editora, com vistas ao lançamento da obra ainda em 2007, quando a luta pela cidadania gay no Brasil completa 35 anos.
O texto deste documento é longo e conta um pedaço da minha vida e da história do movimento gay em nosso país. É uma catarse, um clamor de justiça e mais que tudo uma afirmação de fé na fraternidade.
O que se objetiva aqui é o reconhecimento de que as nossas lutas no Brasil têm uma história aquém dos fatos habitualmente divulgados. E mais: o protagonista desta história permanece ativo no tempo. Não é imperativo esperar que – algum dia – apareça alguém do nosso movimento e resgate esta memória. (Esse alguém, aliás, teria sua tarefa facilitada em recorrendo à área acadêmica, onde já existem alguns trabalhos que focalizam esta história).

A luta pela cidadania gay no Brasil (e provavelmente na América Latina) começou em 1972, em Belo Horizonte. Surgiu em meio às montanhas das Minas Gerais, cercada dos riscos dos “Anos de Chumbo”. Não se subjugou aos arraigados preconceitos que imperavam pelo país inteiro – em níveis incomparáveis aos da atualidade.

Não se viam multidões em paradas coloridas pelas ruas. Nossa orientação sexual remetia às classificações do Código Internacional de Doenças.
Na imprensa, a gente só aparecia nas páginas policiais: anormais, pederastas, sodomitas e tarados. Nenhuma ação do poder executivo em favor da nossa causa, nenhuma voz no parlamento para a defesa dos nossos direitos, nenhuma sentença no judiciário para reparar injustiças à nossa cidadania.
Ainda hoje, ao recordar o início desta história, confesso que me surpreendo e me pergunto como é que foi possível. A consciência existencial traz a resposta: uma tomada da alma pelo arquétipo do amor.

É que o era uma vez desta história surgiu quando descobri o amor gay, um pouco antes das lutas de 1972.
E afirmo que é gratificante saber que a história do movimento homossexual brasileiro tem inspiração numa vivência de amor. E, surpreendentemente, contou com o apoio de um médico, de um padre católico romano e de um pastor presbiteriano. Melhor ainda: todos os personagens estão entre nós e podem ser encontrados em Belo Horizonte. Também muito expressivo para registro: os três personagens coadjuvantes do início da luta são heterossexuais.
Vou contar.

Em 1971, aparentemente bem, chegava aos 26 anos de idade. Ninguém imaginava que o jornalista de sucesso, conselheiro do pessoal na redação, pregador e médium espírita kardecista muito conhecido, que só vestia terno e andava pisando duro fosse homossexual. Sequer sabia-se que parte daqueles modos resultava de treinamento frente ao espelho, nos primeiros anos da adolescência. Um recurso para ficar bem guardado no armário, longe das primeiras pedras atiradas e das quais pretendia fugir para sempre.
Nem eu mesmo tinha consciência plena da realidade, mas representava mais um caso de homossexual a travar a enorme e inútil batalha de negar a si mesmo, na tentativa de adaptação ao modelo socialmente estabelecido.
Fazia de tudo para manter a máscara, exceto experimentar a sexualidade hetero nas chamadas “vias do fato”.
Além daquela fachada, obedecendo a certos princípios, não fumava, não bebia, não comia carnes. Andava de Evangelho na mão. Havia fundado e dirigia a OCAS – Organização Cristã de Amparo Social, uma das mais expressivas entidades assistenciais da cidade.
Não faltava quem sentenciasse: é um missionário, tipo Chico Xavier, que renuncia a tudo por amor ao próximo. Muitos profetizavam: não vai casar, a missão supera o sexo.
Por um lado, tinha o consolo dos resultados do esconderijo. Por outro, mais conflitos com a involuntária e falsa imagem de devoto da castidade. E o medo de ser descoberto como “anormal”?
Ninguém suspeitava. Mas, certas noites, indo a cidades vizinhas, dava vazão ao “amor que não ‘ousava’ dizer seu nome”. Muito menos ser visto na própria cidade entrando no hotel em companhia de outro homem. O maior problema é que o relacionamento homossexual, na minha cabeça, não era um ato de amor – “coisa feita só para homens e mulheres normais”. As escapadas vinham no limite, quando não era possível conter o desejo – que paradoxo – tão indesejado.

Quanta esperança nos avanços da Medicina para que fosse possível reverter o quadro, mesmo depois de ler em livro do Chico Xavier que a homossexualidade não era condenada pelos espíritos de ordem superior.
Parcial e teoricamente portava alguma compreensão da homossexualidade. Mas prevaleciam os condicionamentos sociais e o medo da repressão.

Numa daquelas escapadas fui resgatado pela esperança. Conheci um novo parceiro e com ele a descoberta de um prazer diferente, a partir da sintonia no diálogo. O encontro trazia algo especial, um sentimento que não podia atinar exatamente sobre a sua origem ou extensão.
Passamos a nos encontrar com freqüência até que, um dia, o rapaz olhou fundo nos meus olhos e anunciou: “Descobri que amo você”.
O “mundo” virava de cabeça para baixo. E eu de cabeça para cima. Era o fim do medo e da fuga . Também o amava. E na descoberta chegava a vida em plenitude. Do misterioso útero da vida nascia um novo Edson, uma criança que não apenas chorava, também sorria.
A força do amor assumia a direção do meu destino.
Na família, com colegas e amigos, em toda parte, com naturalidade e orgulho decantava a descoberta mais ampla de mim mesmo e do amor. De pronto, sorrisos e votos de felicidade. Depois, quando entrava nos detalhes, estupefação generalizada. Na redação do jornal, a surpresa: abraços e drinques para comemorar a autenticidade, em atitudes sinceras e espontâneas dos colegas heterossexuais.
Passei a estudar, a ler mais sobre o homossexualismo – a melhor expressão da época.
Estava decidido a travar uma luta.

Na segunda quinzena de julho de 1972, a luta ganhou o noticiário dos jornais de Belo Horizonte. Programei o I Simpósio Brasileiro de Estudos sobre o Homossexualismo (a expressão homossexualidade era absolutamente desconhecida).
O evento embutia toda uma estratégia e táticas imprescindíveis. Vinha sob a moldura de busca de respostas para o intrigante tema da atração sexual entre pessoas do mesmo sexo. Quem lia o noticiário imaginava que seriam debulhadas as teorias médicas e religiosas habituais. Ainda mais que os palestrantes eram o conceituado endocrinologista Marcus Fernandino, o padre José Vicente de Andrade (biógrafo do famoso Padre Eustáquio), o pastor presbiteriano Márcio Moreira e o pregador espírita Edson Nunes. Algumas vezes, o noticiário do enfoque médico apontava para a vanguarda, cuidadosamente colocada ao lado de posições mais rígidas, até mesmo para atender às regras jornalísticas.
O que ninguém cogitou é que a escolha dos palestrantes passasse por cuidadosa triagem, em dezenas de entrevistas com médicos, padres e pastores, numa peregrinação estafante a consultórios, hospitais e igrejas.
Finalmente, o médico, o padre e o pastor foram selecionados em função de seus posicionamentos de abertura em relação à sexualidade entre iguais. Naquele tempo, convenhamos...

Aproximadamente 200 pessoas lotaram o auditório do Colégio Estadual de Belo Horizonte, um dos mais tradicionais estabelecimentos de ensino da cidade.
O medo da repressão da ditadura militar espreitava qualquer iniciativa fora dos padrões tradicionais. Os colegas jornalistas, estupefatos pelos conteúdos da primeira noite, preferiram esperar pelas falas seguintes, numa tentativa de evitar a censura no meio do evento.
O encerramento, na terceira noite, surpreendeu todas as expectativas. Padre, pastor e espírita combatendo o preconceito contra homossexuais e defendendo, assim como o médico havia dito, que nem sempre os conceitos de normal e anormal eram referência ao mérito de uma coisa ou situação. Normal podia ser apenas um conceito estatístico.
Muita gente irradiava emoção por todos os lados. Um crente da Igreja Batista, casado e com filhos, foi ao microfone para anunciar que sua vida mudava ali e que não via a hora de chegar em casa para esclarecer tudo com a família. O homem vinha do Rio de Janeiro, trazido por noticiário de jornal, aflito para saber se o que considerava um mal poderia ser afastado de sua vida. Lágrimas e aplausos surgiram de muitos cantos naquele auditório, enquanto a fisionomia do carioca parecia um retrato da paz colorida de felicidade.
Fiquei ansioso para ver os jornais do dia seguinte. Quanta decepção – a temida censura tinha podado o texto, tirando muito do essencial, no que havia até o dedo da Arquidiocese de Belo Horizonte. Ainda assim era uma vitória. Na semana seguinte, registro na revista “Veja”, um grande trunfo.
O comentário de Ibrahin Sued, então o mais famoso colunista social brasileiro , em sua secção no telejornal de fim-de-noite na Globo, coroava a repercussão: “Homossexuais reunidos em Belo Horizonte. Cavalo não desce escada. Bola preta”. A expressão bola preta, no dialeto do colunista, simbolizava as coisas ele não gostava mas que não podiam ser ignoradas.
Para a história do movimento gay brasileiro, o importante é que o tema deixava as páginas policiais para aglutinar novas atenções e perspectivas.

Nesse ínterim, meu nome já estava banido do meio espírita, exceto na instituição que havia fundado. Mesmo ali, o clima não era dos melhores, soando no máximo a uma tolerância obsequiosa.
Senti que era preciso dar novos horizontes à luta. Mudei para São Paulo em companhia do então companheiro. O II Simpósio estava a caminho.
Veio uma nova busca por médico, padre e pastor, em vão. Dezenas e mais dezenas de entrevistas e só ouvia considerações patológicas no lado médico. Condenações na área religiosa.
Resolvi encarar o desafio sozinho.
A boa sorte parecia ter ido embora.
Após olhares suspeitos e horas de consulta aos superiores, o funcionário da Secretaria de Cultura de São Paulo comunicou que apenas o Teatro do Ipiranga estava disponível. Ficava longe do circuito cultural da cidade e ainda trazia o incômodo de reforma inacabada. Aceitei e fui em busca das redações dos jornais.
E a cada dia era sempre a constatação desagradável: nem uma linha de noticiário. A significância jornalística do fato e mesmo a amizade dos colegas de imprensa não bastavam. A opressão da ditadura militar, aliada dos preconceitos, sobrepunha-se a tudo.
Apenas na véspera da abertura o Simpósio apareceu na imprensa, no “Notícias Populares”, então o jornal de maior circulação na cidade, porém estigmatizado por uma linha editorial sensacionalista. O evento era a manchete do dia: “Bonecas fazem encontro em São Paulo”.
Aquilo trouxe apreensão. O título, no mínimo, afastava quem estivesse no armário.
A cada quarteirão, as letras garrafais do “NP” pareciam anunciar o fracasso da promoção.O jornal tinha o forte de sua venda nas bancas, onde ficava aberto e destacado para a visão dos passantes. Então, resolvi observar as reações, que iam de gargalhadas a olhares muito sérios e de reprovação

Cheguei ao teatro com três horas de antecedência. Não gostei da sua aparência de abandono. Meia hora antes do prazo marcado para o início, a apreensão foi chegando. Faltando cinco minutos, apareceram dois jovens e um idoso que beirava os 80 anos. Ficamos conversando e eles comentavam duas surpresas: o inusitado da promoção e a falta de interessados. Depois de uma hora de atraso, pedi desculpas e expliquei que era melhor adiar o evento. Fiquei à disposição. Nosso encontro ganhou características de terapia de grupo, com o toque da comoção dado pelo idoso, um imigrante alemão, magrinho e falante, que em certo ponto arrematou: “Olha, que Deus o proteja. Pelo menos, não vou morrer sem ter ouvido umas palavras de conforto. A vida inteira sofri com o desprezo. Quanto amor dentro de mim para dar a alguém. A resposta vinha em forma de agressão, de zombaria. Eu sempre disse para mim mesmo que ser homossexual não era um defeito e nem uma doença. Hoje, pela primeira vez, ouço alguém afirmar a mesma coisa”.

Um ano depois, o III Simpósio, também em São Paulo, onde fiquei morando. Tudo muito bem planejado e um teatro ideal, o João Caetano, em Vila Mariana.
Novas peregrinações em busca de médico, padre e pastor para a defesa da causa. Não havia vanguardeiros de plantão.Telefonei para Belo Horizonte. O doutor Marcos Fernandino topou cruzar as fronteiras de Minas. Comprar bonde era intriga do passado. O Brasil tinha de avançar na conquista dos direitos humanos.
Decidi não entregar release para o “Notícias Populares”. Os jornais tradicionais, sob o jugo da censura, permaneciam arredios. A solução, a uma semana do evento, foi tentar anúncios pagos. E deu certo. O simpósio estava comunicado.
Um sucesso de público, com quase 300 inscritos, de jovens a idosos, homens e mulheres. Na primeira noite, avisei que a intenção era ter a presença de um padre e um pastor, mas que não havia sido possível localizar alguém com abertura para o tema, ao contrário do ocorrido em Belo Horizonte. Na platéia, uma senhora de aparência muito séria, em pé, apontava com um lápis para um personagem sentado e que não havia sido alcançado pela minha miopia. Não me era estranho. Tratava-se de Frei Albino Aresi, frade franciscano conhecido em todo o país por seus cursos ditos de Parapsicologia. Dirigia uma clínica em São Paulo, onde usava a hipnose como recurso auxiliar para todos os tipos de casos que se lhe apresentassem.
Um pouco apreensivo, comuniquei ao público que a secretária do Frei Albino anunciava a sua participação como representante católico e parapsicólogo clínico, de acordo com bilhete deixado sobre a mesa.
Aquela apreensão tinha lá sua razão de ser. Frei Albino e eu não falávamos a mesma língua no campo da Parapsicologia, ramo do conhecimento ao qual também me dedicava há alguns anos. Após os primeiros tempos em São Paulo, como redator na empresa dos Mesquitas e Chefe de Imprensa da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, havia deixado o jornalismo e dava tempo integral ao Ibip – Instituto Brasileiro de Informação e Pesquisa Parapsicológica A instituição, fundada ainda em Minas, atendia a esse outro lado das minhas afinidades de conhecimento.
O problema é que Frei Albino usava a Parapsicologia para combater a Doutrina Espírita, o que não era correto e nem científico, na mesma linha do famoso Padre Quevedo. Já a minha postura era de mostrar a Parapsicologia em imparcialidade, sem qualquer conotação de apoio ou combate a qualquer religião. Frei Albino e eu já havíamos passado por enfrentamento em debate público, ocasião na qual deu a conhecer um temperamento instável e agressivo.

E chegou a terceira noite do novo simpósio.
Frei Albino apresentou a homossexualidade como um desvio de conduta. Ao final, ofereceu seus serviços clínicos com a garantia de que até ali havia “curado” todos os casos de homens e mulheres que sentiam atração pelo mesmo sexo. O auditório ouvia, contraído, cada vez mais contraído...
Na minha vez, como parapsicólogo, na referência histórica citei a literatura mediúnica de Chico Xavier, na qual a atração entre iguais era colocada como uma experiência natural na esteira das reencarnações. Depois, lembrei os enfoques do padre e do pastor no simpósio em Belo Horizonte, como fatos sociais significativos da atualidade. Arrematei com as pesquisas de Memória Extra Cerebral, da Parapsicologia, que entre os casos pesquisados apontava para hipotéticas mudanças de sexo de uma reencarnação para outra, com a manutenção de traços da sexualidade anterior na posterior. Conclui pela afirmação do sexo entre pessoas do mesmo gênero como uma manifestação natural e saudável, principalmente pela presença do afeto e do amor nos relacionamentos, na mesma linha de identidade conhecida nos relacionamentos heterossexuais.
A mesa estava repleta de perguntas por escrito. Frei Albino, como membro da mesa, alegou prioridade para intervenção. Acusou-me de suspeito para tratar do tema em pauta, porque “agia em causa própria e dominado por uma idéia obsessiva”. Foi interrompido por vaias e levantou agressivamente um cajado que trazia para compor o visual de frade. Aos berros, anunciou que se retirava em sinal de protesto pela “minha falsidade na conceituação do simpósio como evento sério e respeitoso”. A juventude ficou de pé, uníssona, como se aquilo tivesse sido ensaiado: “Fora! Fora! Fora!”.
O ambiente ganhou um cenário inimaginável. Desde a escadaria do palco, passando pelo corredor lateral, até o hall de entrada do teatro, a figura desalinhada e patética de Frei Albino ia alvoroçando os ânimos. O frade vociferava, lançava esconjuros, enquanto subiam de tom os apupos da platéia.
Depois, silêncio e mais silêncio, olhares em prospecção de todo aquele silêncio. Até que explodiu uma risada geral e descontraída.
Mais adiante, tempo para responder à pilha de perguntas amontoadas sobre a mesa. Por fim, uma enorme fila de cumprimentos e abraços.

Passados dois meses, lanço mão de nova tática para difundir a conceituação da homossexualidade como uma vivência natural e saudável. Ao invés de seminários específicos, incluo o tema nos meus cursos do Ibip, que já rompiam as barreiras da cidade de São Paulo. A expressão homossexualismo foi trocada por homossexualidade. Um pouco mais de tempo e os cursos chegavam a quase todas as médias e grandes cidades brasileiras. Mais de 50 mil freqüentadores foram contabilizados em alguns anos. O Ibip tornou-se o mais conhecido instituto de Parapsicologia no país. E veio a projeção internacional: minha pesquisa sobre Bioenergia é premiada como vencedora no VII Congresso Internacional de Ciências Psíquicas, em Gênova, na Itália, em 1975. Fora apresentada pelo psicobiofísico Henrique Rodrigues, que em seguida é convidado para visita científica à União Soviética. O fato repercutiu também na imprensa do nosso país, com ápice em chamada e notícia de destaque no Jornal Nacional.
Em 1976, ao lado do professor Henrique Rodrigues, fui representante brasileiro à VII versão do já citado congresso europeu, então sediado em San Remo, na Itália. Apresentei trabalho sobre a Interação Medicina/Psicologia/Parapsicologia. E o fato repercutiu nos Estados Unidos e em diversos países da Europa e da Ásia. Era uma das sementes do que posteriormente passou a ser conhecido internacionalmente como Holismo. Após o congresso, ainda em companhia do professor Henrique Rodrigues, faço visita de estudos à Espanha.
Paralelamente, há tempos vinha me preparando e lancei bases a um novo processo terapêutico que implantei ao lado de médicos e psicólogos que clinicavam sob minha orientação. Mantive a sigla Ibip para o instituto e só mudei o extensivo para Instituto Brasileiro de Integração Psíquica. A Dra. Thelma Moss, da Universidade da Califórnia, falava de meu trabalho em suas conferências nos EUA e na Europa. Acabei recebendo a visita de uma equipe de trabalho do saudoso e internacionalmente conhecido psicólogo Carl Rogers. A finalidade era acompanhar de perto nossas sessões de psicotranse, abalizadas por surpreendentes resultados em pacientes neuróticos e psicóticos. A codificação do processo incluía recursos de algumas conhecidas escolas psicológicas e o trabalho pioneiro do médico brasileiro Eliezer Mendes, de Salvador, com o qual mantive estreito relacionamento, apenas balançado pela sua posição de encarar a homossexualidade como patológica. Posteriormente, confirmando sua sincera disposição de conhecimento, doutor Eliezer reformulou seu conceito.

O tema homossexualidade continuava freqüentando meus cursos em todas as latitudes do Brasil.Dava seqüência a uma militância absolutamente solitária, até 1978, quando surgiram o Grupo Somos e o Grupo Gay da Bahia.
Em 1979, no bairro Paraíso, região nobre da Paulista e a três quarteirões da famosa avenida, há algum tempo o Ibip estava muito bem instalado em um casarão de dois andares, com uma equipe de médicos e psicólogos que seguiam as diretrizes do processo terapêutico da minha orientação. Contava com enorme clientela formada especialmente pela classe média alta, empresários e artistas famosos, em meio a trinta por cento das vagas destinadas gratuitamente a pessoas carentes. Um sucesso profissional. Uma significativa realização humana, social e pessoal.
Até que Paulo Maluf resolveu colocar o delegado Richet para “autuar” e prender homossexuais em plena rua. Uma agressiva encenação, noite após noite, de viaturas e cassetes que cercavam dois quarteirões da Avenida Ipiranga, próximo à Avenida São João Aqueles dois quarteirões famosos na realidade e no imaginário gay.
A revolta subiu em minha cabeça. Era preciso ir além da militância entre os pilares dos auditórios de faculdades, colégios, teatros e salões de convenção de hotéis cinco estrelas.
A emergência chamava para a ida às ruas. Juntei forças ao lado do pessoal do Grupo Somos e da Convergência Socialista, no quartel general da resistência improvisado no Teatro Ruthe Escobar, cedido por iniciativa da própria atriz.
Estava nas ruas a primeira passeata gay do Brasil. Uma parte do centro de São Paulo teve o trânsito de veículos parado por mais uma hora, em meio a muitos olhares curiosos e estupefatos dos assistentes das calçadas. Acontecia de tudo: aplausos, vaias, gargalhadas e até gritos histéricos da resistência à liberdade de ser e de viver.
E lá estava eu, postado à frente da passeata, sem fugir das câmeras das estações de TV, mesmo consciente de que o mundo poderia desabar sobre a minha vida. A liberdade, sempre a liberdade. Tão importante quanto a liberdade só o amor
A caminhada era também uma catarse, um grito inevitável do anseio pela dignidade, pelo ideal libertário que a homossexualidade trouxe para a minha vida.
No dia seguinte, o mundo começou a desabar. Muitos pedidos de cancelamento de consultas e um clima de comentários os mais diversos na sala de espera. As imagens na TV tinham deixado suas marcas. No ambiente das sessões, clientes traziam notícias do que se falava na recepção da clínica.
“Não era à toa que ele sempre arranjava um jeito de falar sobre homossexualidade nos cursos”. “Nunca disse nada porque pensava que podia prejudicar esse trabalho que é tão importante. Mas, certa feita, encontrei o professor Edson de mãos dadas com um rapaz no restaurante e ele, com muita naturalidade, apresentou o acompanhante como seu namorado. Que coragem. E o interessante é que ninguém chamava a atenção dele, apesar das opiniões jocosas e dos olhares de espanto vistos por todos os lados”. “Imagina, como é que vou convencer meu marido de que nosso filho adolescente pode ser tratado por um homossexual? Eu entendo, conheço o professor Edson e sei que não tem problema, mas...”.

Mais um dia, mais cancelamentos de consultas. E a cada semana, a clínica ficava mais vazia. Mantive o bom ânimo. Ainda encontrei forças para percorrer os teatros de São Paulo, em busca de assinaturas de artistas famosos em manifesto de protesto pela repressão policial aos gays. Dezenas de artistas famosos assinaram aquele documento.

Entrementes, a clientela ia ficando cada vez mais reduzida. Passados alguns meses, não houve outra saída: encerrei as atividades do Ibip em São Paulo.

Voltei para Belo Horizonte e promovia cursos e dinâmicas de grupo na Faculdade de Medicina e no salão de convenções da Basílica de Lourdes. O pároco daquela famosa igreja, certa feita, confidenciou-me: “Você está me deixando numa situação difícil com o bispo, com esses enfoques de homossexualidade, mas até agora está dando para contornar. Vamos ver até quando”.
Nem o bispo reclamava, nem falar de homossexualidade nos cursos e dinâmicas de grupo afastava os interessados em um trabalho que virou tema nas rodas de comentários das diversas camadas da classe média de Belo Horizonte.
Também, como sempre fiz desde a saída do armário, mantinha as manifestações públicas de afeto. Nada parava o novo ciclo. Era a volta do sucesso profissional e da realização pessoal muito ampla. Ficava patente o seguinte: as pessoas não se importavam com a minha homossexualidade, desde que ela não fosse divulgada com grande destaque na mídia, porque isso interferia com o meio familiar delas.

Também era o tempo da construção do Partido dos Trabalhadores e criei o primeiro Núcleo Gay do partido.
Teve início uma temporada de entrevistas sobre movimento gay nos jornais. E a percepção clara e objetiva de aproximação de uma nova catástrofe financeira e social – temida e não evitada. Como cortar as asas da liberdade com as próprias mãos?

Nas primeiras eleições após o fim do ciclo militar, em 1982, sai candidato a deputado federal. Plataforma assumidamente gay e de apoio a outras minorias sociais. Naquele tempo, os partidos tinham tempo igual na TV e a chapa do PT aparecia completa, à tarde e à noite no Programa do TRE. E lá estavam, diariamente, semana a semana, meu nome e sobrenome, retrato e identidade homossexual estampados para os milhões de eleitores de toda Minas Gerais. Provavelmente, a maior divulgação continuada que a cidadania gay já alcançou na televisão brasileira. Havia também o programa de rádio e que chegava aos municípios onde não era captado o sinal de TV.
A campanha reunia uma militância atuante e consciente. Mais de 40 homens e mulheres, majoritariamente jovens, assumidamente homossexuais, muitos deles saídos do armário com a divulgação da candidatura. Os integrantes do Terceiro Ato, primeiro grupo gay de Minas, somaram forças no Núcleo Gay do PT e na candidatura. Uma felicidade apenas balançada por incontáveis agressões verbais desferidas por freqüentadores de bares e boates do próprio gueto, sem contar a proibição de entrada na Boate Freedon, à época a mais badalada do meio gay em Belo Horizonte. Essa casa era sucessória de outra, a Brulete, de cujas instalações havia sido expulso um ano antes. Motivo: um beijo de boca com o namorado. Alegação do empresário: “Minha mãe trabalha aqui e não pode ser desrespeitada com essa falta de vergonha”.
No interior, a campanha era mais realizadora. Em Ipatinga, faixas nas ruas anunciavam: “Os gays saúdam seu líder Edson Nunes”. E a Câmara Municipal, local do encontro, estava coberta de cartazes acolhedores. Em Ponte Nova, uma demonstração de persistência e lealdade. A viagem atrasou e quando chegamos ao bar combinado não havia mais ninguém. A porta fechada mostrava um recado em folha de cartolina: “Estamos no bar tal, da zona boêmia, único lugar aberto até mais tarde”. Eram duas horas da madrugada. E no local indicado encontramos uns 20 rapazes, os que sobraram de mais de 50 que se prontificaram a batalhar pela candidatura gay. O bate-papo foi até às sete da manhã.
Em Divinópolis foi um mini-comício. Mais de cem participantes espalhados pelo quintal de um dos médicos mais conhecidos da cidade.
Já em Governador Valadares, com vistas a fugir de uma temida repressão, o pessoal marcou encontro para um restaurante próximo à área rural.
E a primeira e única boate gay de Juiz de Fora até então, em pleno centro comercial, cancelou a programação normal de sábado, dia de maior movimento, trocada por uma palestra da candidatura e sessão especial de perguntas e respostas sobre a homossexualidade. A boate estava lotada, de portas fechadas, e ali ficamos, madrugada adentro, discutindo as questões da nossa cidadania. dio e que alcançava os munic homossexual jdentidade homossexual estampados para os milhstsa dos direitos homossexuais e de out

Não houve vitória eleitoral. Mas venceu a vontade de estar livre. E ficou uma certeza triste: a maior parte dos homossexuais não estava preparada para construir a própria felicidade. Lembrava era o dito de Falcaut: “A opressão torna o oprimido um instrumento da própria opressão”.

Pouco tempo depois, algo grave e doloroso substituiu a alegria dos meses de tanta animação da campanha, durante os quais não fiz outra coisa senão cair na militância. De volta aos cursos, não encontrei mais tantos interessados em participar daquelas atividades de crescimento humano.. Mais precisamente: na primeira tentativa foram apenas três inscritos e nas duas seguintes não havia mais ninguém. Antes, eram auditórios que variavam entre 150 a 200 pessoas por quinzena.
Não tive alternativa. O destino era Manaus e por três motivos. 1) Uma cidade muito receptiva ao meu trabalho. 2) Distante de Minas. 3) Um lugar do país onde fui informado de que não havia grande circulação de uma revista semanal de sucesso que estampara uma foto minha beijando um rapaz na boca, com a legenda: “campanha eleitoral gay em Minas”. Não havia como deixar de simular uma forma de armário, muito tática e conscientemente, em função de um tempo para garantir a sobrevivência
Ir para Manaus foi chegar de novo e rapidamente ao sucesso. A única tristeza era deixar para trás minha primeira filha, que Deus havia enviado ainda em 1976. Filha do coração, filha de verdade, porque no meu conceito a alma imortal é de significância acima dos laços biológicos da transitoriedade carnal.
Mas o sucesso em Manaus não duraria muito tempo. Como não existe graça na vida se não há liberdade, dois fatos impediram o Ibip de seguir em frente em Manaus. Primeiro, meu comportamento natural de afetividade em público, numa cidade que naquele tempo não ostentava uma grande população. Depois, o caso de um colunista social que era muito querido na cidade e começou a ser criticado e marginalizado até pela imprensa local após abrir uma boate gay. Assumi sua defesa, em público, gerando mais polêmica.
Como nas vezes anteriores, o não social reaparecia envolvendo o conhecimento público e geral da homossexualidade. Enquanto o comportamento gay era pessoal, ainda que com toda a visibilidade possível, não havia embaraços. Parece que o problema sempre foi o seguinte: a pessoa não se importa de o terapeuta ser gay, desde que imagine que os outros não sabem. Os outros, ora os outros! Quanta vontade de bater um papo com Sartre, pra gente falar dos “cordeirinhos de rebanho”, numa daquelas madrugadas de vigília entre o fracasso, a fé e a obstinação da liberdade.

Voltei para Belo Horizonte e para o jornalismo. Enfim, nada de embaraços no exercício profissional. Na festa de casamento de uma filha do lendário Aureliano Chaves, com recepção no mais luxuoso hotel da época em Belo Horizonte, além de não usar o traje sugerido, ainda fui de camisa-bata com uma destacada inscrição Gay Power estampada no peito. Muitos olhares surpresos e alguns estupefatos, mas nenhum tipo de protesto ou cerceamento.
No mais, pelas ruas, a qualquer hora e lugar, mãos dadas com o namorado Ouviam-se gritinhos histéricos, que a gente fazia de conta que não percebia.

Era o ano de 1984. Reativei o núcleo gay do PT, ao lado de uma participação ativa nas ações pelos direitos humanos em geral, no que passei a ser visado por determinados setores policiais. Acabei preso e espancado na Delegacia Seccional Centro. O policial, de soco inglês em riste, abusava da perversidade. Tive fratura em costela. Minha prisão foi num início de madrugada, quando beijava o namorado em um bar que não era do gueto. Às nove horas da manhã, a liberação veio com um conselho gritado em alto e bom som: “Vá agora ao IML e faça um exame de corpo de delito. Antes, veja aqui no livro, não há registro de sua entrada. Fica plausível a gente dizer que você brigou na rua e quer fazer média à custa da polícia”. Não segui o conselho por outro motivo. Minha mãe acabava de deixar uma UTI devido a problemas cardíacos. E era muito preocupada com o que pudesse ocorrer em relação à polícia, a partir de um histórico de participação auxiliar nos tempos da resistência armada à ditadura militar.
Tão logo mamãe ficou recuperada, coincidentemente a uma repressão policial sofrida por um amigo gay, chamei meus colegas de imprensa e ocupei o saguão da Seccional Centro. Ali denunciei, publicamente, as duas violências ocorridas na repartição policial. Compareci acompanhado da vereadora Helena Greco, do PT vulto credenciado da luta pelos direitos humanos e da campanha Tortura Nunca Mais. A TV Bandeirantes mostrou imagens da denúncia em seu telejornal de rede nacional.
Criei o Movimento Mineiro de Defesa dos Direitos Homossexuais.
Em 1985, passei a assinar a primeira coluna gay da imprensa mineira, no “Jornal de Domingo”, semanário de ótimo nível e maior circulação junto ao público da classe média, editado pelo brilhante jornalista Gilberto Menezes.
Mais adiante, diversos bares do centro comercial de Belo Horizonte passaram a uma campanha sistemática para o afastamento de freqüentadores homossexuais, negando atendimento. Com a cobertura do jornal e a armação de todo um esquema de prevenção, onde estava incluída a proteção de um delegado de polícia amigo da redação, numa noite de sexta-feira parti para a mais arriscada reportagem da minha carreira na imprensa. Na verdade, um ato de militância gay.
Chegava em cada um dos bares denunciados e onde era conhecido como militante homossexual desde os tempos da candidatura. Pedia uma cerveja. e Era informado de que havia uma nova orientação. Estava impedida a presença de gays. Então, assumia uma postura bem afirmativa e dizia que aquilo era ilegal. O dono chamava a polícia. Quando os soldados vinham para uma abordagem beirando à violência, tirava a carteira de jornalista do bolso e me identificava como gay assumido que estava exatamente fazendo uma cobertura sobre o comportamento ilegal de certos bares. Assim, ia vencendo cada barreira, explicando aos comerciantes que a seqüência do comportamento importaria em ações na Justiça – em nome do direito constitucional de igualdade geral entre as pessoas.
O êxito do confronto sem resistência durou até meados da madrugada, quando cheguei ao último bar do roteiro, o “Vagalume”, exatamente por ser o maior e de significativa freqüência de público homossexual fora dos guetos. Um dos mais conhecidos estabelecimentos da noite de Belo Horizonte na década de 80..
Pedi a cerveja. Veio a negativa e com ela a exigência de minha saída do lugar. Disse que não sairia. O dono do bar lançou um olhar de picardia e avisou: “Se não sai por bem, vai sair por mal”. Ele tinha um esquema paralelo de apoio, em conluio com os integrantes de um posto móvel da PM que ficava bem ao ali ao lado.
Passados poucos minutos, de cassetes para o alto, dois policiais caminhavam em minha direção. Saquei rápido da carteira de jornalista. Os modos agressivos foram contidos a tempo. Um deles sentenciou: “O senhor vai nos acompanhar até o posto”. Atendi à solicitação. Um pouco antes da cabina, um dos PMs foi à frente e o outro ficou comigo por uns instantes. Daí a pouco, a um sinal feito a certa distância, fui conduzido à presença de um tenente. O homem, rispidamente, informou que eu perturbava a ordem pública e que ficaria ali por um tempo para refrescar a cabeça. Mostrou uma metralhadora e disse que aquilo “era para ser usado em casos excepcionais e que ninguém ficava sabendo”.
Encarei o homem, com os olhos fixos nos dele. Expliquei pausadamente: “Olha, tenente, palavra de quem não deseja prejudicá-lo, é melhor agir dentro da lei. Posso assegurar que estamos sendo observados”.
Fui empurrado para a rua e levado para a frente do bar. Formou-se um círculo com dezenas de curiosos em volta. Logo, aquilo virava uma pequena multidão no meio da madrugada fria. O tenente segurava um barrete e o brandia no ar. Anunciava, em voz bem alta, que ia “dar uma lição para servir de exemplo a outras pessoas sem moral”. Também subi o tom de voz. Gritei o mais alto que pude: “Quero repetir que não estou sozinho! Tudo que está acontecendo é testemunhado e acompanhado por colegas da imprensa. Eles estão aqui, caladinhos, mas estão. Viva os direitos gays!” O tenente gritou que era mentira e logo em seguida pediu a um subordinado que chamasse uma viatura para me levar para Delegacia de Vigilância Geral. Pedi a Deus que o tenente estivesse equivocado quanto à ausência de meus colegas da imprensa. Corria o olhar por todos os cantos e não via ninguém do jornal. Meu consolo era acreditar que se tratava de mais uma decorrência do meu alto grau de miopia. Caso contrário, sabia, eram notórios os casos de tortura naquela delegacia mais conhecida como “Inferno da Lagoinha”, onde 500 presos ficavam amontoados nas celas com capacidade para pouco mais de 100 pessoas.
Neguei entrada na viatura, exceto se fosse acompanhado do dono bar. Houve uns segundos de diálogo, ao pé do ouvido, entre o policial e o empresário. Mais alguns minutos e fui informado de que iria na viatura, enquanto o outro personagem da contenda pegaria um táxi. Afirmei que a diferença de tratamento era inaceitável, que também deveria seguir de táxi.
Fui convincente no protesto, no que devo ter mexido com a razão do tenente, pois ele baixou o tom de voz e ordenou a um soldado que chamasse outro táxi.
Pude reparar que o comerciante seguiu na frente, livre, acabando por se adiantar e ser perdido de vista, enquanto eu era seguido de perto pela viatura policial.
Tão logo o táxi parou rente à porta do Departamento de Vigilância Geral, um detetive abriu a porta, sorridente. “Você é o Edson Nunes, não é isso? Pode ficar tranqüilo. Seus colegas de imprensa cuidaram de tudo e o delegado está à sua espera, enquanto esse cara encrenqueiro vai mofar no corredor” – falou descontraído e apontando para o dono do Vagalume.
Adentrei a sala do delegado, que também estampava um sorriso de bom humor. Ouvi, atento, a introdução: “Estou sabendo de tudo, das lutas que você tem feito e dos problemas que enfrenta. Pois, hoje, você tem a oportunidade de registrar tudo. Não se preocupe com o tempo. O escrivão vai ouvi-lo. Esteja à vontade para relatar o que decidir que seja importante na fundamentação da queixa”. Ainda trocou alguma conversa comigo e em seguida fui para a sala do escrivão, onde fiz um depoimento que durou mais de duas horas.
Após assinar o documento, quase por volta das cinco da madrugada, conduzido pelo policial a um determinado corredor, ali encontrei, de novo, o dono do “Vagalume”. A cara do homem mostrava indignação e revolta. Reclamou ao escrivão sobre a demora, no que foi avisado de que o delegado de plantão estava ocupado com outro caso e que, assim, teria de esperar a chegada de outro prevista para as 10 horas da manhã. A musculatura facial revelou que a revolta crescia. Ele não se conteve. Encarou-me e disse: “Dá pra entender? Vocês incomodam no meu trabalho e ainda tenho de passar por tudo isso? Que saudades dos militares. Esse país está virando uma bagunça”. Preferi não agravar a decepção do homem. Antes de sair, compenetrado, penas fixei os olhos nos olhos dele.

Ainda naquela manhã, fiquei sabendo que meu anjo da guarda durante a madrugada havia sido o Afonso Borges, uma das feras do jornalismo mineiro, hoje um empreendedor cultural de renome em todo o país.
Depois, o “Jornal de Domingo” trazia toda a aventura registrada em fotos e textos, ao lado da notícia de que a Câmara Municipal instalaria uma comissão especial para investigar os casos de preconceito contra homossexuais em bares da cidade.

Dois anos depois, muita coisa havia mudado em minha vida. Trabalhava no jornal “Estado de Minas” e batalhava pela revitalização do Movimento Mineiro de Defesa dos Direitos Homossexuais. Em todo o país, há algum tempo a militância gay havia entrado em refluxo e Belo Horizonte não era uma exceção. Tempos da Aids, da “peste gay” como insistiam alguns meios de comunicação.
Paralelamente, experimentei programar um dos meus antigos cursos e, surpresa, parecia que nada de ruim houvesse acontecido. Estavam de volta os tempos de salões cheios de gente querendo aprender a meditar, relaxar, usar o potencial interior, conhecer melhor a própria individualidade. E em linha bem diferente da imagem difundida pelos processos de auto-ajuda que prometem uma felicidade fácil ao alcance da negação dos problemas existenciais.
O sucesso foi tanto que não demorou a reabertura do trabalho clínico, em lugar privilegiado, na região do alto da avenida Afonso Pena.

Quando tudo parecia calmo e tranqüilo, de repente chega a onda massiva de rotulação dos gays como o primeiro e quase exclusivo grupo de risco para o contágio e a transmissão da Aids.
Não podia ficar calado. Aquele era o mais doloroso desafio apresentado para a luta em defesa da cidadania e da dignidade plena da população gay.
Havia sido eleito diretor da Casa do Jornalista, uma das mais conceituadas instituições da sociedade civil organizada em Minas. Uma eleição muito significativa porque avalizada pelo voto direto da classe, em sua maioria composta de homens e mulheres heterossexuais e que não ignoravam minha identidade e militância homossexual.

Também era tempo de carnaval. Eu e o mais recente namorado decidimos, na terceira noite, ir ao salão do Clube Atlético Mineiro, o Labareda. Como sempre, nada de enrustimento. Afagos, toques, abraços e beijos no maior prazer possível, como ocorrido antes no Iate Tênis Clube e no Clube Jaraguá, sem qualquer tipo de reprimenda. Muito ao contrário. Naqueles dois conceituados clubes ocorrera uma significativa onda de olhares e de afagos fraternos em apoio ao comportamento descontraído que eu e o namorado não contínhamos. Mas ali, no clube alvinegro, um lugar popular, vieram os seguranças, que acompanhados de policiais, nos retiraram à força, sem qualquer atenção aos protestos e identificações. Passado o feriado das cinzas, o Clube Atlético Mineiro recebeu telegrama de todo o colegiado de diretores da Casa do Jornalista. O texto era de protesto e alertava que novas atitudes como aquela deveriam ser evitadas.

O episódio, no entanto, deixou marcas psicológicas, que juntadas ao clima da Aids acabaram por conduzir o raciocínio a uma atitude extremista. Passei a interpretar que o surgimento da Aids era apenas uma terrível artimanha do sistema para agravar os níveis de marginalização à homossexualidade.
Ensarilhei armas verbais contra a pecha da Aids como epidemia característica da população gay.

Não demorou e deixei a reflexão orientar a emoção. Procedi a um estudo metódico das informações médicas sobre a síndrome. Acabava de ser traduzida uma obra técnica e mergulhei nela com toda a disposição de encontrar esclarecimentos em fonte confiável. Afinal, a publicação vinha da própria equipe que orientava os procedimentos médicos da Aids nos Estados Unidos, berço mais próximo da nova ameaça.
Li e reli. Fiz apontamentos e anotações. Ganhei segurança para perceber que a primeira atitude, de repulsa ao estigma, não era totalmente desprezível.
Os relatos dos casos, o histórico clínico e o da evolução da epidemia não resistiam ao crivo de uma análise com o rigor do método científico.
Com aquela amostra oficial e passível de críticas fundamentadas, a princípio passei a colocar em dúvida que houvesse um vírus responsável pela transmissão do HIV (à época chamado de HTLV-3), posicionamento revisto com o surgimento das constatações definitivas.

No entanto, finquei pé, consciente e inspirado por um espírito de responsabilidade, que o episódio da Aids envolvia um grande equívoco (voluntário ou involuntário) em alguns posicionamentos assumidos pela Medicina Americana e disseminados pelo mundo.
O ponto principal era a possibilidade da ocorrência de Amostragem Viciada. Em poucas e resumidas palavras: com os primeiros casos atribuídos aos homossexuais, fato muito explorado pela imprensa mundial, a Aids ficara estigmatizada como característica dessa orientação sexual. Posteriormente, heterossexuais portadores da síndrome teriam induzido seus médicos à ocultação de diagnósticos. Como exemplo extremo, bem próximo, lembrava que até um homossexual de Belo Horizonte, apontado como o primeiro caso brasileiro da infecção pelo vírus, em nome do preconceito teve seu diagnóstico ocultado durante um certo tempo. A causa: pressão da família sobre a equipe médica. A partir de um fato como esse, o que imaginar de casos ocorridos na população heterossexual?

Também discordava da forma agressiva e desumana com que parcela dos médicos tratava a comunidade homossexual, em obediência à cartilha importada dos Estados Unidos. Uma verdadeira disseminação do pânico, fator passível de desencadear sintomas psicossomáticos que poderiam levar a falsos diagnósticos. Minha posição era corroborada pelo fato de que, durante certa fase, mesmo que uma pessoa fizesse o exame e ele fosse negativo, na presença de determinados sintomas esse era o dado efetivamente considerado para rotular a pessoa como portadora da síndrome. Mais adiante, surgiu a denominação de um novo quadro denominado de “Doenças Ligadas à Aids”, que deixava seus portadores na dúvida quanto à presença ou não do temido vírus e ainda mais sujeitos ao domínio do pânico. Rechacei a nova iniciativa com veemência, apontando-a como capaz de alterações psicossomáticas profundas e simuladoras de novos falsos diagnósticos da Aids.
Não identifiquei fatores significativos que pudessem excluir as mulheres de contágio pelo vírus e considerei que a principal causa do desenvolvimento da Aids no organismo apontava para depauperamentos psicofísicos. Abri a hipótese de trabalho de que, no futuro, a epidemia estaria de braços dados com a pobreza e o subdesenvolvimento cultural.

E calma, gente. Isto não é descrição de posições da atualidade. Também não recorri a previsões místicas. Apenas aplicava um pouco mais de atenção na análise da literatura médica da Aids em fins da década de 80.

Alertei para o risco a que estava exposta a população heterossexual, ignorada nas campanhas de prevenção, especialmente devido ao grupo dos drogados usuários de seringas. Destacava que, provavelmente, eles seriam numericamente significativos em termos da população heterossexual atingida e não devidamente alertada para os riscos do contágio..
Abri uma guerra declarada às campanhas de prevenção destinadas exclusivamente aos homossexuais, ao lado de denunciar o tom terrorista das campanhas endereçadas aos guetos.
Interceptei e levei ao fracasso duas campanhas “preventivas” em Belo Horizonte, por discordar de suas mensagens. Mais adiante, quando o Ministério da Saúde anunciou a primeira campanha nacional pela TV, tive conhecimento antecipado do conteúdo. Vi a iniciativa como agressiva e mandei telegrama para o Ministro e release para a imprensa. Anunciava que entraria em greve de fome, em Brasília, tão logo os filmetes entrassem no ar. O Ministério da Saúde refez o conteúdo. Pelo menos um êxito em meio a tanta controvérsia.

Travei seguidos e muitos debates em público com médicos que orientavam os procedimentos clínicos da Aids. Um colega da imprensa confidenciou-me que o Dr. Paulo Roberto Teixeira (autoridade destacada no trato com a síndrome) após tomar conhecimento das minhas ponderações, teria dito que elas mereceriam sua atenção, em especial quanto ao item relativo à forma de abordagem do público homossexual. Nunca tive oportunidade de confirmar a informação, mas ainda gostaria de saber da sua autenticidade ou não, em que pese o respeito devotado a aquele colega.

Durante a Reunião Anual da SBPC em Belo Horizonte, em fins da década de 80, distribui documento com referência à minha hipótese sobre amostragem viciada. O respeitado jornalista Marcelo Coelho, da “Folha”, publicou artigo em seu espaço naquele jornal, defendendo que fosse dada atenção ao fato. O título da matéria: “Ovo de Colombo”.
O problema é que cada vez mais estava sozinho na luta e a militância gay voltava a interferir no meu lado profissional. A recorrência de êxito do Ibip havia ocasionado outra debandada do jornalismo e vivia uma nova dedicação exclusiva aos cursos, dinâmicas de grupo e atendimentos individuais como terapeuta holístico.

No auge da solidão, quando já era classificado como inimigo da saúde pública, em função dos embates com os médicos, percebi e senti que não tinha mais forças e nem condições financeiras para seguir naquele tipo de batalha. Pela primeira vez sentia que havia sido derrotado em uma determinação de vida. Uma quase agonia da liberdade.

No início da década de 90, o movimento pelos direitos homossexuais, com raras exceções, mergulhava num quase total refluxo. Entre a militância remanescente, destaque para o incansável Grupo Gay da Bahia, talvez a única instituição do segmento que não perdeu o fôlego.

O que se via, então, era o surgimento de Ongs voltadas exclusivamente para a prevenção da Aids. Valorosos militantes da vida tornaram-se agentes exclusivos da luta contra a morte. Um trabalho meritório, porém contaminado por conceitos e procedimentos questionáveis da Medicina em seus primeiros contatos com a nova epidemia.

Nesse clima, decretei que não fazia mais sentido resistir. Continuaria minha luta pela defesa da vida, com dignidade e plenitude sim. Mas longe das celeumas e das incompreensões que minhas atitudes acabaram por despertar no próprio segmento homossexual. Momento de lembrar um dito dos antigos: se a palavra é de ouro, o silêncio é de prata (ou o inverso?).

Vieram os tempos das paradas e a emoção tocava forte no coração. Que alento! A militância homossexual voltava e com muita força. Mas a imagem que via das paradas era a exibida pelas estações de TV e pelas fotos dos jornais. Um visual que sugeria um “Carnaval da Aids”. Não consegui a melhor interação. Na falta de informações corretas, o posicionamento incorreto: distância das paradas.

Em 1998, numa estação de TV de Belo Horizonte, vejo entrevista do Danilo Oliveira, um militante que sacudiu a lembrança dos velhos tempos. Veio uma enorme vontade de procurá-lo. Mas não havia clima para tanto em minha vida – quase totalmente arrasada.

Em 1997 ocorrera a perda das minhas duas fontes de renda como redator, depois que a crise econômica do país fechou as empresas onde trabalhava. Fui obrigado a dispor do que tinha, de tudo que tivesse algum interesse de compra, como forma de sobrevivência da família, que àquela altura contava seis filhos e filhas. Até brinquedos das crianças foram vendidos.

A vida sugeria alucinação inacreditável, onde imagens da abastança do passado conflitavam com a miséria que cada vez mais e ameaçadoramente batia à porta. A comida em casa era quase medida e ainda pobre de nutrientes no almoço e na janta. Pela manhã, café sem leite e pão sem manteiga. Minhas roupas e as dos filhos beiravam o nível do surrado.
O mais grave é que a mudança do nível de vida, sabia, podia ocasionar sérios prejuízos à estrutura psicológica da família. Os filhos já preferiam distância dos amigos, pois os passeios nos shoppings e outras atividades de lazer estavam proscritas. Faltava até material escolar. Uniformes rotos, calçados de péssima qualidade. Adeus, escolas particulares.

Nunca descuidara das orientações visando o processo de formação da personalidade dos filhos. Mas a hipótese da rua da amargura nunca fora tema de qualquer preparo.
Jamais fizera poupança quando o êxito do Ibip representava uma significativa movimentação financeira. As altas somas eram revertidas para a ampliação do trabalho, com vistas ao sonho de criação de uma clínica escola.
O inusitado pregava uma peça cruel. Estava psicologicamente balançado. Mas ainda restavam a fé e a esperança.
Alguns velhos companheiros do jornalismo acabaram tendo notícias da minha lamentável situação.

Dinorah Carmo (então presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas), Dídimo Paiva (ex-presidente), Rachid e Rachid (nome lendário na classe), Gilberto Menezes (o grande fera) e sua esposa Vanessa (novata de sucesso no jornalismo) formaram uma linha de frente. As redações foram visitadas em busca de socorro – a chamada corrida do chapéu.
O quadro tinha duas faces. Por um lado, dava graças a Deus. Não seria despejado da casa e a comida não faltaria para a família, graças aos amigos e muitos colegas do jornalismo que me prezavam a ponto de uma reação daquelas. Por outro, a fotografia do fracasso e da decadência, do fim da estrada. Conceitos habituais sobre dignidade social estavam massacrados. Bem vinda a compreensão sobre os desafios de ordem espiritual e também a força de agradecer a Deus e aos amigos. Era o caos. Mas não estava abandonado. A liberdade é que fazia questão de provar que tinha o seu preço
Passava os dias entre manifestações de agradecimento e reflexões apreensivas sobre o andamento dos fatos, enquanto a lista de doações saia das fronteiras das redações e chegava ao território do PT, partido que ajudei a fundar e onde ganhei a imagem dos chamados históricos – figuras às quais se atribui um valor de luta na construção partidária.

Concomitantemente, um dos mais conceituados jornalistas de Minas lembrava a um destacado dirigente petista que não era justo esquecer um daqueles que mais lutaram pela construção do PT em Belo Horizonte. Segundo a expressão textual daquele colega – “minhas capacidades profissionais não podiam ser esquecidas”.
O PT ouviu a reivindicação e minha vida profissional ganhava um novo desenho, agora na administração pública.
Mas a gente sabe que política não se faz só com flores, que o ser humano é ele mesmo em qualquer parte e que é impossível exigir perfeição nos relacionamentos humanos, sociais e políticos, como de resto em tudo...
Alguém descuidou dos propósitos de justiça e, de um dia para outro, surgia a ameaça de desemprego após os 60 anos de idade. Isso equivalia a uma nova visão do caos.
Não tive alternativa comigo mesmo e nem com as circunstâncias políticas em volta. Entrei em greve de fome, na Casa do Jornalista, apoiado pelo presidente Aloísio Lopes. No terceiro dia, um pouco combalido pela incursão em um tipo de protesto que jamais exercitara, fui aliviado pela comunicação de que o caso estava solucionado. Voltava a prevalecer o espírito de justiça.

E, crises à parte, o palco da existência trazia novas emoções.
Em 2004, com a atmosfera geral um pouco aliviada, abro um jornal e leio notícia que me toca na alma: casamento gay coletivo – uma ação do Danilo Oliveira. Naquela hora, senti que não seria mais possível ficar longe do calor das lutas do passado. O chamado para a volta à luta, na expressão viva do Danilo, estava ali num aceno irrecusável.
Ainda naquela noite, voltei à militância coletiva e pública pelos direitos da cidadania gay.

Quanto à militância pessoal, a verdade é que jamais a abandonei. Ela sempre acompanhou meus passos, a qualquer hora e em qualquer lugar. Em todos os anos que marcaram o afastamento das ações públicas, nunca dei as costas às convocações para entrevistas à imprensa ou colaboração em trabalhos acadêmicos..

Entrei de corpo e alma na campanha do Danilo. Pela primeira vez, desde 1982, dei um voto que escapava ao partido que ajudei a fundar e construir. E não se tratava de qualquer ato de rebeldia ou dissensão. Era exclusivamente o compromisso de consciência com a causa gay, com a disposição e a dignidade do Danilo em representá-la na campanha eleitoral. Esclareci a decisão com as direções partidárias e também finquei esforços para reeleger o prefeito petista Fernando Pimentel, assumindo a coordenação do Comitê da Diversidade Sexual, uma atividade para depois das 18 horas – em função dos vínculos profissionais na Prefeitura.
Quanto ao Danilo, alimentei a certeza do sucesso da sua candidatura, corroborada por um esforço que tomava todo o meu tempo disponível e que se estendia pelas madrugadas. Tinha certeza de que passadas as refregas da própria candidatura em 82, os tempos seriam outros e que Belo Horizonte teria o seu primeiro vereador assumidamente gay.
Depois, a triste constatação:faltava muito para que a consciência cidadã de homens e mulheres homossexuais pudesse chegar ao nível ideal. E longe de significar desestímulo, a lamentável realidade da derrota eleitoral do Danilo reacendia ainda mais o espírito de luta.

Quase ao fim de 2004, lanço uma Carta Aberta ao Presidente Lula reivindicando a criação da Secretaria Nacional de Políticas para a Diversidade Sexual. A iniciativa morre no nascedouro, a partir do desinteresse com que o movimento homossexual recebeu a iniciativa, por motivos que permanecem desconhecidos. O documento não chegou às mãos do Presidente Lula.

No início de 2005 vem um novo baque. Fico sabendo, da noite para o dia, que estava desligado dos vínculos profissionais na Prefeitura de Belo Horizonte.
Certo de que a iniciativa não representava uma atitude partidária, mas ação isolada, entro em nova greve de fome. Perco 22 quilos e obtenho a recomposição dos parâmetros de justiça.

Ainda em 2005 surge um fato significativo: homenagem da Parada Gay de Belo Horizonte, com troféu em reconhecimento como o “militante pioneiro do movimento gay em Minas Gerais”. Simultaneamente, atitudes isoladas de membros do nosso movimento organizado ferem a minha sensibilidade. Faço opção por não registrar os detalhes e nem nomear os responsáveis – em nome de um sentimento maior pela unidade da nossa causa.

Já na AGM – Associação Gay de Minas, também em 2006, um ato de desprendimento do seu presidente, o valoroso Itamar Santos. Na pauta de discussões para a eleição da nova diretoria, Itamar sugere meu nome para substituí-lo no comando do grupo. Sensibilizado, explico que não seria justo, que a AGM o tinha como sua face de luta, incansável luta de tantas vitórias obtidas em função dos seus sacrifícios de ordem pessoal. Aceitei a vice-presidência.

O ano de 2006 traz à tona crises de identidade em setores isolados da estrutura política do Partido dos Trabalhadores, com uma ponta de nova ameaça à minha pessoa, em tempo rechaçada pelo prefeito Pimentel, o presidente municipal do partido Aluízio Marques e mais uma dezena de autênticos companheiros do partido – aliados incansáveis da causa maior dos direitos humanos.

Na campanha eleitoral, uma militância devotada à causa da reeleição do Presidente Lula foi minha resposta a quem tentava confundir batalhas internas com comportamentos equivocados e a posição do militante histórico e fiel ao verdadeiro ideário do PT. O cartaz idealizado por Ziraldo para as comemorações dos 26 anos do partido trazia um toque especial para refletir e seguir em frente: “PT – a volta por cima”.

Agora, talvez não falte quem veja nesta Carta Aberta um ato de arroubo ou precipitação. Estou certo de que representa o desaguadouro de meses e meses de reflexão. É decorrência do estado de espírito que orienta minha existência desde que a força do amor despertou a naturalidade do orgulho gay.
É grande a felicidade pela descoberta de ter dado inicio às lutas do movimento gay no Brasil (e provavelmente na América Latina).

Sigo na luta. Nem sempre a idade física corresponde aos anseios e à força do espírito. Na atualidade, mais que nunca, a determinação de lutar permanece como chama capaz de vencer todas as sombras e obscuridades do caminho.

Simultaneamente a esta Carta Aberta há outra e seu destinatário é o nosso digno e respeitado Presidente Lula. Uma nova versão do documento escrito em 2004, onde o objetivo visado é a criação da Secretaria Nacional de Políticas para a Diversidade Sexual.
Estou ciente de que o movimento pactuou um compromisso estampado no Programa de Governo para o segundo mandato do Presidente Lula: a criação de uma Subsecretaria GLBT. Entendo as razões que fundamentaram a proposta. Em meio às críticas infundadas que se desferiam contra o número de ministérios na gestão petista, anunciar uma nova Secretaria Nacional seria dar munição às forças representativas do retrocesso.
Vivemos um momento novo, que mais que tudo há de ser de busca da justiça e da inclusão social e política.
É óbvio que a proposta desta Secretaria despertará controvérsias, especialmente partidas das mesmas forças do atraso e do preconceito, que durante muitos anos tentaram plantar a idéia de que um Operário não reunia condições para a Presidência da República.

O governo do Presidente Lula já instituiu as Secretarias Nacionais das Mulheres e dos Negros. Não somos nem mais e nem menos. Somos iguais.
Abdicar da reivindicação imediata de uma Secretaria Nacional é perder o passo da História, com o fator agravante de que somos o segmento mais marginalizado na sociedade brasileira.

Escrevo ao Presidente na posição de fundador e militante histórico do PT, ao lado da identificação como pioneiro do movimento gay no Brasil.

Aqui e agora – este é o tempo de juntar nossas forças e fazer ecoar clara e corajosamente a nossa disposição de seguir em frente – rumo à cidadania plena.

União e Força!

Quantas vezes fênix?

Edson Nunes


Belo Horizonte, 3 de janeiro de 2007


PS – A Carta Aberta ao Presidente Lula tem sua divulgação adiada para a segunda quinzena deste mês, em função do noticiário que aponta sua ausência do país na primeira quinzena.